Em Salvador: o trabalho do Censo para contar a população indígena em contexto urbano

  • Destaques

  • No balanço do primeiro mês de coleta do Censo 2022, em agosto, a população declarada indígena recenseada no país já havia passado da metade de toda aquela que foi contada no Censo 2010, tendo sido recenseadas 450.140 pessoas autodeclaradas indígenas.
  • A Base Territorial do Censo mapeou agrupamentos indígenas em territórios não oficialmente delimitados e locais com alta concentração dessas populações, inclusive na área urbana, passando de 146 no Censo 2010, para 879 em 2020. Um crescimento de 502% em 10 anos.
  • No Censo 2022, qualquer pessoa que se declarar indígena, em qualquer município que esteja, poderá informar a sua etnia e quais são as línguas faladas pelo seu povo.
  • “A gente não pode desconsiderar que há indígenas em Salvador e que essas pessoas precisam também ser assistidas com saúde, educação e ter acesso a todos os bens públicos. Nós, indígenas, lutamos para nosso reconhecimento, para as pessoas saberem que nós existimos.” (Genilson Taquari, indígena Pataxó).

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O ambiente era tipicamente urbano. Após chegar a uma rua movimentada, com muitos carros, pedestres e pequenas casas comerciais, dobra-se à esquerda e se desce uma longa escadaria, com casas dos dois lados. É nesse local, no bairro de Alto das Pombas, em Salvador, que vive Genilson Taquari.

Indígena da etnia Pataxó, Taquari, como é conhecido por todos, mora na capital baiana há 10 anos. Natural da aldeia Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália (a 755 km de Salvador), no Sul da Bahia, ele é estudante de direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Taquari é um indígena em contexto urbano e explicou o preconceito que pessoas como ele sofrem: “A sociedade brasileira não está preparada para compreender o indígena. O pouco de conhecimento que se tem aprendido na escola é ainda muito incipiente, muitas vezes parte de senso comum”, diz.

“Há uma série de distorções. Aí você acha que indígena só é aquele que usa o cocar. Se não estiver de cocar, acham que ele não é indígena. Se ele não tiver um cabelo liso e cortado em formato de cuia. Aí acha que ele tem que ser assim, que ele tem que estar pintado…”, completa.

 

 

Taquari não está sozinho. Segundo o Censo 2010, um pouco mais de um terço dos 896.917 declarados indígenas do país vivia na zona urbana (36,22%). Se este índice era baixo na região Norte (17,96%), ficava em quase metade no Nordeste (49,15%) e chegava muito perto dos 80% no Sudeste (79,96%).

Como exemplo, São Paulo/SP era o 4º município com a maior população indígena do país, o maior fora da Região Norte, com 12.987 habitantes.

Além disso, 4 em cada 10 indígenas viviam fora de terras oficialmente demarcadas no último recenseamento (42,32%). Na Bahia, este índice chegava a 72,03%. Salvador era o terceiro município com a maior população indígena vivendo fora de áreas oficialmente demarcadas, com 7.563 habitantes autodeclarados, abaixo apenas dos números registrados em São Paulo/SP (12.024) e São Gabriel da Cachoeira/AM (11.682).

É o caso também de Jerry Matalawê, que mora no bairro de Piatã. Há 15 anos, o Pataxó, nascido na Terra Indígena Barra Velha, na região do município de Prado (a 789 km de Salvador), também no Sul do estado, se mudou a trabalho para Salvador com a esposa Merk Pataxó e a filha do casal, Am’ni Pataxó, oriundas da aldeia Coroa Vermelha.

“A gente tem que pensar que os povos indígenas, do ponto de vista da sua vivência, o que nós chamamos do ‘bem viver’, costuma estar sempre relacionada ao território. A ideia de coletividade, a ideia de um cuidar do outro. E sair do território indígena e estar na cidade nem sempre é vontade própria”, conta.

Coordenador de Políticas para os Povos Indígenas na Bahia, Jerry entende estar numa posição privilegiada em relação à maioria dos indígenas que migraram para a zona urbana: “Nós sabemos que a grande maioria dos parentes que vieram para cá, vêm sozinhos, e aí perdem o contato com a questão da cultura, da língua e dessa ideia da coletividade”, diz.

“Viver no território urbano traz muitos desafios. Porque nos coloca numa situação de cumprir aquilo que o colonizador sempre quis, que é o ideal da integração, ou seja, de que a gente começa a vivenciar e começa a ficar muito parecido com os não-indígenas”, completa Jerry.

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Mas mesmo nesse contexto adverso, a esposa dele explica a importância de manter as tradições vivas: “A gente sabia dessa dificuldade que a gente teria aqui de manter nossa cultura, porque é diferente na aldeia. Mas, de qualquer forma, eu, enquanto mãe, tentei ao máximo passar isso para nossa filha. A gente tem nosso canto, a gente tem nossas comidas, a gente tem nossa dança”, diz Merk.

“E eu fiz todo o possível para que Am’ni também não perca esses costumes. Então, acho que dá para ela ter uma base para poder não deixar de se reconhecer como indígena mesmo ela estando dentro de Salvador”, completa.

No Censo 2022, qualquer pessoa que se declarar indígena, em qualquer município que esteja, poderá informar a sua etnia e quais são as línguas faladas pelo seu povo, podendo declarar até 2 etnias e até 3 línguas. Mesmo que a pessoa não saiba responder estas questões, a sua autoidentificação será respeitada pelo recenseador.

Base Territorial do Censo 2022 buscou mapear áreas de grande população indígena fora das terras delimitadas

Para retratar a população indígena do país da forma mais fiel possível, o Censo buscou uma maneira de que mais pessoas possam se autodeclarar como tal. Em áreas de grande população indígena, caso o informante dê outra resposta no quesito cor ou raça, aparece a pergunta de cobertura “você se considera indígena?”

Só que, como quase metade da população indígena vivia fora das áreas delimitadas em 2010, a pergunta não poderia se limitar a estes locais.

Com isso, a Base Territorial do Censo precisou trabalhar de diversas formas para mapear agrupamentos indígenas em territórios não oficialmente delimitadas e locais com alta concentração dessas populações, inclusive na área urbana.

“A pesquisa foi feita baseada em registros administrativos, aliada ao trabalho de campo das agências”, explicou Leonardo Afonso, coordenador da Base Territorial do Censo na Bahia.

“Os principais dados administrativos foram da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), por meio dos registros de domicílios beneficiários de tarifa diferenciada, dados do Censo 2010 com unidades visitadas onde houve pessoas se declarando indígenas, e a relação de aldeias por município da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)”, completou Leonardo.

O trabalho de campo das agências também foi fundamental para encontrar agrupamentos indígenas fora de territórios demarcados, como explica Leidson Júnior, coordenador de Área do Censo 2022 em Porto Seguro (a 707 km de Salvador):

“Nós fizemos reuniões com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e obtivemos um arquivo com a relação de aldeias georreferenciadas que estavam sob responsabilidade da instituição. De posse desse arquivo, realizamos a interseção com a malha setorial da área de Porto Seguro para obter a relação de aldeias. Com isso, percebemos os agrupamentos nos setores que possuíam aldeias não setorizadas, segundo os critérios da Base Territorial”, disse.

Esse trabalho fez com que os agrupamentos fora de terras indígenas mapeados passassem de 146 no Censo 2010, para 879 em 2020. Um crescimento de 502% em 10 anos.

Com todo esse trabalho, no balanço do primeiro mês de coleta do Censo 2022, a população declarada indígena recenseada no Brasil já havia passado da metade de toda aquela que foi contada no Censo 2010 (896.917). Até o dia 29 de agosto, haviam sido recenseadas 450.140 pessoas autodeclaradas indígenas.

Na Bahia, a população indígena recenseada no primeiro mês do Censo 2022 (81.992 habitantes) já ultrapassou a de todo o Censo 2010 (60.120), e é a 2ª maior do país, em termos absolutos, até o momento, atrás apenas daquela que já foi contada no Amazonas (152.218).

A Base Territorial do Censo identificou 7.103 localidades indígenas distribuídas em 827 municípios brasileiros. Do total de locais, apenas 632 são terras indígenas oficialmente delimitadas (8,9%). A grande maioria é formada 5.494 agrupamentos indígenas (77,3%), sendo 4.648 dentro de terras indígenas e 846 fora desses territórios.

Existem ainda 977 (13,8%) áreas denominadas “outras localidades indígenas”, aquelas onde há presença desses povos, mas a uma distância mínima de 50 metros entre os domicílios.

Na Bahia, foram mapeadas 134 localidades em 39 municípios. Destas, 35 são terras oficialmente delimitadas (26,1%), 55 são agrupamentos (41,0%) e 44 foram consideradas como “outras localidades indígenas” (32,8%).

Os estados com mais localidades indígenas estão na região Norte do país: Amazonas (2.602), Roraima (587) e Pará (546).

 

 

Identidade e políticas públicas: a importância de se declarar indígena

Mas, afinal, qual é a importância de o indígena que está fora da aldeia ou terra oficialmente delimitada se declarar como tal no Censo Demográfico?

“Primeiro, porque é importante você saber quem é você. E depois que você externaliza a sua identidade, o seu ser, aquilo também vai contribuir para uma formulação de política pública”, responde Genilson Taquari, que completa: “É preciso, sobretudo, nas grandes cidades, uma política mais canalizada para o setor indígena. A gente não pode desconsiderar que há indígenas em Salvador e que essas pessoas precisam também ser assistidas com saúde, educação e ter acesso a todos os bens públicos. Nós, indígenas, lutamos para nosso reconhecimento, para as pessoas saberem que nós existimos”.

Taquari cita, como exemplos de questões positivas que podem ser trazidas pelo Censo, o fomento ao debate e a construção de eventos, visando valorizar esses povos.

Para Jerry Matalawê, “a grande dívida dos brasileiros é conhecer seu passado”, e o Censo 2022 está fazendo com que muitas pessoas nas grandes cidades consigam resgatar a sua história: “Eu vi na TV, que, na Bahia, se superou a identificação de pessoas do Censo de 2010. Isso é muito interessante. E eu acho que isso tem a ver também com o nível de visibilidade que a temática tem conseguido”

Ele completa: “Isso cria a oportunidade de mais pessoas começarem a se ver. E a gente tem percebido, de maneira muito interessante, como muitas outras pessoas têm se colocado nesse sentido de dizer ‘Eu também sou, também faço parte dessa luta’. Porque tem um dizer que é ‘Todo mundo tem sangue indígena. Uns é nas veias, outros nas mãos, outros na alma.’”

Os dois entrevistados, Taquari e Jerry, moram em bairros distantes 20km um do outro. Com a população indígena urbana espalhada por toda a cidade de Salvador, a Coordenação Técnica do Censo decidiu ampliar ao máximo a delimitação das Áreas de Interesse Operacional (AIO) – de modo a viabilizar que um número significativo de domicílios responda a pergunta de cobertura quando o morador não se declarar indígena na questão de “cor ou raça”.

André Urpia, superintendente do IBGE na Bahia, explicou e celebrou a decisão: “Tem nos trazido uma maior qualificação da informação, dando uma precisão maior sobre o real tamanho da população indígena. Com certeza, isso vai ser muito importante para essas pessoas que estão sendo retratadas nesses dados.”

Para mais informações sobre esse assunto acesse a página do IBGE na Internet – www.ibge.gov.br ou diretamente na Agência de Notícias IBGE – http://agenciadenoticias.ibge.gov.br/

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