OBITUÁRIO: KÊNIA COMO RARA ROSA
O obituário é uma lembrança sempre muito solitária. Ele nos leva a uma série de memórias que intimamente se passam os dias e com eles tudo aquilo que se pode falar, rir e até chorar. Kênia era uma mulher ímpar, suas limitações físicas nunca a impediram de uma presença marcante, de um humor cativante, mas que não nos equivoquemos! Nunca foi intenção dela agir como arquétipo de bobo da corte, mas de agir dentro de seu dom natural: o de levar o ser humano um pouco mais, ironicamente ou não, daquilo que ele mais precisa, à humanidade.
Hoje, 30 de janeiro, perdemos a presença física de Kênia depois de uma infindável luta por sonhos e uma infindável batalha por dizer seu nome e ser mulher e chefe de família com dois filhos. Conversávamos muito, sobre tudo. A única que tinha uma coragem destemida de mandar áudios de 23 minutos e o que me fazia, ainda mais destemido, ouvir cada minuto pausadamente.
Eu chegava a anotar o que ela dizia para que não esquecesse de comentar no final do áudio cada detalhe – ou do podcast, como falávamos. Contávamos sobre tudo, um ao outro: nossos sonhos, nossas vulnerabilidades, nossa força de vontade, o que passamos e nossas pequenas vitórias de cada dia. Eram conselhos daqui falas dali e até presságios. Uma vida mais ativa do que nunca, onde a opinião dela era mais potente que qualquer outra. Muito erro era imaginar que na capa da gentileza de Kênia existia apenas uma mulher vulnerável, mas não! Opiniões fortes, pensamentos ainda mais potentes e uma força de vontade veemente frente a tamanhas complexidades da vida humana que nos apresenta.
Ao pensar em sua perda, uma perda tão próxima, me assusto com o fato de que essa proximidade não mais haverá fisicamente e também não acredito que em nenhuma outra forma senão em minhas memórias. Serão elas as guardiãs de tudo aquilo que foi a mim confiado e de todas as alegrias e vitórias que, por muitos anos, seguiram e conquistaram a uma pessoa uma série de amigos, admiradores, clientes, enfim, pessoas que a amavam.
Com a boa memória que tenho, guardarei até o fim os bons momentos, os momentos desafiantes e tudo o que eu pude fazer para alcançarmos juntos alegrias indomáveis. Seria como guardar para si boas risadas, boas memórias, boa pessoa e muitos causos dotados de uma redoma de energias que nos reconstruíam. Sentia, até, que ela se desfazia, muitas vezes, para que pudesse auxiliar a construir em nós aquilo que nos faltava.
Agora, no epitáfio de sua vida, eu não só descrevo a mulher incrível que ela foi, mas jubilar dizendo em alto e bom tom: bravo! Bravo! Bravo! Aplausos para alguém que sorriu tanto, chorou tanto, confraternizou como nunca e viveu uma vida comum sendo muito incomum, genial e bem informada. Concatenava suas ideias como ninguém, mantinha com força seus pensamentos e solidificava tudo aquilo que era necessário para gerar esperança. Essa é a palavra: esperança.
Cito, mais uma vez, a frase de Clarice Lispector, à qual guiou a minha vida e a vida de Kênia, em “A Paixão Segundo G.H.: “dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria”. E que perfeita alegria seria essa se eu não tivesse o privilégio em ter convivido com alguém tão especial ao passo em que, por meio dela, pude evoluir como pessoa, aprender a ser um ser humano melhor, a reclamar menos e a potencializar todas as minhas qualidades.
Ela, como sempre, era minha fiel escudeira na leitura de meus artigos longos de opinião, comentadora de minhas impulsividades reluzentes e sempre uma boa amiga. Como foi uma boa amiga! Nos falamos pela última vez há um dia. E hoje descobri sua partida em um ponto de ônibus.
Me despeço como sempre a cumprimentei e uso o vocativo que ela também sempre me cumprimentou. Bom dia, flor do dia! Até logo, flor de lottus.
Você estará sempre conosco! E uso de minhas únicas habilidades para lhe prestar esta homenagem.
Gabriel.
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