NATAL NA PAMPA
Ivar Hartmann promotor de justiça aposentado
Houve um tempo na pampa gaúcha em que só a lua iluminava a terra, transformando as coxilhas verdes em enormes ondas claras. Tempo de criação de gado, poucas luzes refletiam moradias longínquas. Mas os campos foram de povoando. As estâncias diminuíram seu tamanho levadas pelos inventários. Os vizinhos, lindeiros, peões se multiplicaram. Não é mais possível a um vivente sair em uma noite de lua cheia para caçar uma mulita, o tatu para o Natal, levando consigo um liquinho e esperança. Só com Deus. Só consigo. Só com o amigo. Coberto pela lua e agasalhado pela fresca da noite. O jovem sobrinho era muito querido na estância. Cara alegre, roupa de CTG, completavam o gaúcho bonachão. Seu único inimigo era o pai da prima que amava e proibia o namoro. Passados cinquenta anos, é difícil bem analisar questões tão pessoais e antigas.
Perto do Natal ele passou uns dias conosco e na lua cheia saímos, ele, eu e uns peões de vaqueanos, porque carne de mulita no Natal é presente de Deus para quem se perde nas noites da campanha. A noite estava linda e silenciosa como devia ser. Prateados, os lajeados corriam vagarosos e o gado se debruava nas cercanias. Voltávamos para a casa. A coxilha de pasto raso era a nave silenciosa de uma catedral. Súbito, ao meu lado, o companheiro começou a chorar em silêncio. Sentamos na grama e os peões se perderam no rumo da casa, que o trabalho sempre começava cedo. Fiquei quieto ouvindo o pranto do amigo. Que ao final de transformou em lamento, com a mais pura poesia de amor que já ouvi, ambientada como por determinação divina. Era a explosão dos sentimentos que todos conheciam e que ninguém podia solucionar. A mercê, meses e anos afora, pelo não. Duro, permanente, incontestável. E que agora transbordava em uma corrente incessante. Ficamos tempo lá fora. Ele falando e chorando. Eu, ouvinte silencioso, pensando que um carinho tão grande não podia ser desprezado pela natureza onde estávamos. Passaram os anos. Ao fim, tudo se acertou. Vivem felizes há muitas décadas. Da catedral, da lua e do pranto, só eu sei.
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