No Dia do Meio Ambiente, ribeirinhos comemoram legado da operação no Jequitinhonha
Moradores de comunidades banhadas pelo manancial destacam que água em boas condições, possível após fechamento de garimpo ilegal, devolveu a vida ao Alto Jequitinhonha
Um rio que corre nas veias de seu povo. O Jequitinhonha, curso d’água que corta o exuberante Vale do Jequi, da região Central ao Nordeste de Minas, deu a seu povo novos motivos para sorrir. Cruzando o vale com águas cristalinas, em sua primeira porção, no Alto Jequitinhonha, o rio voltou a trazer alento e esperança a essa população marcada pela estiagem do semiárido mineiro, após a retirada das máquinas do garimpo ilegal de Areinha, em 2019. “Ver essa água limpa pela primeira vez, coisa que eu nunca tinha visto, é como uma veia que correu no meu braço, no meu corpo. É a artéria que faltava, uma sensação que não tem como explicar”.
O depoimento do agricultor Adão Aparecido Silva Antunes, de 43 anos, que relata a qualidade da água na altura da comunidade rural de Cordeiros, em Bocaiúva, simboliza a importância da preservação do meio ambiente para a qualidade de vida da população que vive às margens de um dos rios mais importantes de Minas Gerais. Também mostra, neste 5 de junho, data em que se comemora o Dia Mundial do Meio Ambiente, o legado deixado pelo Governo de Minas e Polícia Federal, com a Operação Salve o Jequitinhonha, responsável pelo fim da operação garimpeira mecanizada na região e pela retomada da vida no rio.
Para marcar a data, o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Minas Gerais (Sisema) fez uma expedição por comunidades ribeirinhas do Alto Jequitinhonha e, em reportagem especial publicada desde a última quarta-feira (3/06), destaca depoimentos de moradores que dependem diretamente do rio. Em Areinha, localidade entre Diamantina e Couto de Magalhães, o garimpo promoveu intensa degradação no curso d’água que dá nome a uma das regiões de cultura mais rica do Estado. O trabalho do poder público, que encerrou o impacto ao meio ambiente, foi desenvolvido pela Polícia Federal, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e Polícia Militar de minas Gerais (PMMG) em abril de 2019.
Baseada em levantamento do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), que mostrou redução média de 87% da turbidez da água a jusante do garimpo no pós-atividade garimpeira, uma equipe da Assessoria de Comunicação do Sisema percorreu a região que vai desde a nascentes do rio, no município do Serro, Região Central de Minas, até o reservatório da Usina Hidrelétrica de Irapé, em Grão Mogol, no Norte de Minas, para conhecer a realidade dos ribeirinhos com a nova característica da água. No primeiro dia da reportagem especial, destaque para os resultados analisados pelo Igam da turbidez a jusante do garimpo. O foco da segunda reportagem foi o histórico de descumprimento de determinações que levou o poder público a desencadear a operação.
Nesta terceira reportagem, estão relatos valiosos, como o do agricultor Adão Antunes, que abre o texto. Na fala do morador do Vale, ele diz não ter memórias do Rio Jequitinhonha limpo na comunidade de Cordeiros. Segundo ele, a água barrenta que marcava todas suas lembranças dificultava bastante a vida dele e de sua família. “A gente bombeava a água, colocava na caixa, e aí esperava a água sentar, pegava ali mais ou menos uns 20 centímetros do fundo de barro. Aí passava para outra caixa, porque por baixo era lama pura. Você colocava no filtro cedo e a tarde tinha que lavar de novo, porque não passava. Você colocava cinco litros de água no filtro e filtrava dois ou três litros”, afirma ele.
Na família do agricultor, é seu Osvaldo Leal Antunes, de 76 anos, pai de Adão, quem tem memórias do Jequitinhonha limpo. “O Jequitinhonha para nós estava morto. Como eu o conheci limpinho, ver ele sujo sem poder usar a água foi uma tristeza geral. E com poucos dias dele limpo já voltou nossa alegria. Espero que Deus ajude e continue limpando cada vez mais. Porque para nós o importante é isso, água limpa é vida”, afirma Osvaldo.
A água correndo limpa no fundo da roça de Adão e de outros parentes que moram na comunidade de Cordeiros permitiu ao agricultor sonhar e fazer planos. A ideia é plantar um hectare de abóbora e começar a usar a terra para tirar não só o sustento, mas também renda para ele, a mulher e os três filhos. Ele usa uma roda d’água instalada no rio para abastecer caixas de quatro núcleos familiares. É a própria correnteza do rio que gira a roda e faz jogar o recurso hídrico nas caixas de Adão e seus parentes, o que é considerado uso insignificante.
No caso do balseiro Antônio Carlos Moreira Soares, de 41 anos, os sedimentos carreados pela água barrenta prejudicavam seu trabalho e tiraram dinheiro de seu ganha pão. Ele é um dos responsáveis por fazer a travessia de balsa pelo Jequitinhonha em Terra Branca, outra comunidade que pertence a Bocaiúva e fica nas margens do rio. Com a água suja, eram comuns os sedimentos se depositarem e criarem obstáculos para a passagem da balsa, especialmente na época da seca.“Com areia no meio do rio, era comum a balsa ficar encalhada. Já aconteceu de ficar quatro meses parada por causa da areia no meio do rio. Depois que limpou parou de agarrar. O rio Jequitinhonha é o meu ganha pão, por isso é importante que ele fique assim”, diz o balseiro. Além disso, com água limpa ele já começa a perceber aumento do movimento na travessia. “Água limpa significa mais visitantes e pescadores na região. Eles falam que a água está maravilhosa e que está dando até para ver peixes no fundo”, completa.
SALVANDO COMUNIDADES DA SECA
Nascido em Terra Branca e com a vida feita em São Paulo, o motorista aposentado Aladir Gonzaga de Souza, de 66 anos, se lembra bem, antes de rumar para a cidade grande, da qualidade da água que corria no Jequitinhonha. Mas tomou um susto quando voltou, já para viver sua aposentadoria. “Quando eu voltei em Terra Branca para morar mesmo encontrei a comunidade com água do rio sem condições de uso, água barrenta, toda suja, peixe não existia mais, foi a situação caótica que estava. Hoje, depois da Operação Salve o Jequitinhonha, a coisa se tornou bem melhor. Eu não sou contra o garimpo, sou a favor da água limpa para a gente beber. Assim como nós, que moramos na beira do rio, existem milhares de ribeirinhos até onde o rio termina na Bahia que dependem exclusivamente da água do rio”, afirma ele.
Foi Aladir quem ajudou a socorrer a comunidade de Terra Branca em outubro do ano passado, quando a estiagem severa secou a nascente que fornece água para o distrito de cerca de 300 famílias. A única opção naquele momento foi o Rio Jequitinhonha, e como trabalhou a vida inteira de motorista, Aladir passou 15 dias dirigindo o caminhão-pipa que matou a sede da população. “Não fosse o rio limpo, isso aqui ia virar um deserto. Ou furava poço artesiano ou então ia acabar Terra Branca”, diz ele.
Situação muito parecida foi vivenciada em Olhos D’água, município vizinho de Bocaiúva que também têm comunidades ribeirinhas do Rio Jequitinhonha. Uma delas é Barreirinho, com cerca de 40 famílias, que foi salva da seca pela água do manancial, segundo o prefeito da cidade, Rone Douglas Dias. De acordo com ele, a logística de operação quando o garimpo mecanizado ainda atuava rio acima demandava caminhão-pipa que tinha que deslocar 40 quilômetros de estrada de terra para chegar apenas em Barreirinho, sem contar outras comunidades que também dependiam do mesmo esquema. A água mais limpa permitiu, inclusive, que a prefeitura instalasse um sistema de tratamento por decantação na comunidade, que oferece água potável para quem mora em Barreirinho. “A mudança foi muito radical. Antes a água era totalmente barrenta, as pessoas sem poder usar aquela água para nada. Nem para molhar planta servia. Hoje a gente vê a diferença que é”, diz o prefeito.
ÁGUA DIRETO DO RIO E TRATADA PARA BEBER
Quem aproveita o novo sistema é o casal Aparecida Vanusa Leal Pereira, de 53 anos, e o motorista Antônio Pereira, de 61. Os dois são moradores de Barreirinho e retiram água tratada do sistema feito pela prefeitura para uso doméstico. Aparecida também usa para molhar as plantas na horta. Ela conta que é até difícil descrever o que sentiu quando passou a ver a água correr limpa no fundo de seu terreno, ainda em 2019. “Eu até emocionei, porque eu nunca tinha visto ela nessa dimensão. Foi uma sensação maravilhosa que eu nunca tinha sentido”, afirma.
Hoje, ela se comunica com o irmão, o supervisor técnico José Kleber Leal, de 48 anos, que é morador de São Paulo, o tempo todo por aplicativo de mensagens. Kleber é membro do movimento Salve o Jequitinhonha e responsável pela página do grupo em uma rede social. Por telefone, ele coleta informações diariamente sobre a qualidade da água com os parentes e conterrâneos de Barreirinho e também com companheiros de outras comunidades. “O rio representa vida. Representa esperança para aquela região tão sofrida por tantos anos. Quando as pessoas viram a água limpa, todos tiveram novos horizontes. O Jequitinhonha é tudo para aquela região. Todos ali dependem do rio de alguma forma. Seja na pesca, no seu alimento, na água para beber, na água para molhar as plantações. Representa tudo que era prejudicado com a água suja”, diz ele.
FESTA NO RIO
Quando a água do Rio Jequitinhonha voltou a correr limpa para as comunidades ribeirinhas de Carbonita, um acontecimento simbólico marcou a celebração do momento para quem ainda não conhecia o manancial livre da turbidez gerada pelo garimpo. Normalmente, uma semana do mês de outubro é de folga para as crianças. Em outubro do ano passado, um grupo de pais de crianças resolveu se juntar na beira do rio para aproveitar com os pequenos a folga e comemorar o presente. “Como nós fomos presenteados com a água limpa do rio, as comunidades de Canabrava, Barreiro e Ribeirão se reuniram e fizeram um bolo para as crianças dentro do Rio Jequitinhonha. A água completamente limpa, um bolo flutuando na água e a criançada se divertindo. Aquilo foi a renovação que o Rio Jequitinhonha trouxe para nós”, diz o músico José de Jesus Morais, de 46 anos, popularmente conhecido como Zé Cocada, e que também é vereador por Carbonita.
Na comunidade de Barreirinho, moradores também passaram a aproveitar para o lazer a praia formada no rio a partir de uma água de melhor qualidade. Segundo o lavrador rural Maurício Ferreira de Souza, de 51 anos, o local é bastante procurado nos fins de semana para contemplar as belezas do rio. “Agora, também estamos vindo nessa praia trazer as crianças. O Rio Jequitinhonha é a nossa vida, é tudo para nós. A gente toma banho com essa água, molha as plantas, eu mesmo tenho uma irrigação bem pequena, que eu tive que parar na época que o rio estava com água suja, porque estava sapecando as folhas das plantas”, diz ele.
Outro lugar que o lazer predomina com o rio limpo é Terra Branca. É lá que outro integrante do movimento Salve o Jequitinhonha e também membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Jequitinhonha, Ari Fabiano Queiroga, costuma levar seu caiaque para aproveitar os fins de semana de sol, quando ele não está em Montes Claros, onde reside atualmente. Segundo ele, esse é apenas um dos exemplos de possibilidades trazidas pela água mais limpa, que configurou uma nova relação entre as comunidades e o Jequitinhonha. “Isso mudou muito a forma como as pessoas se relacionam com o rio. Elas passaram a ver o rio como um manancial que tem alguma utilidade para eles. Da forma que ele estava, sujo e poluído, não servia para nós. Ele não atendia sua função social. Agora que a água limpou, as pessoas estão dando mais valor ao próprio rio e vendo o curso d’água até como uma possibilidade de geração de renda e de sustento para suas famílias, além do lazer que é tão importante”, afirma.
SONHO DE ÁGUA LIMPA NO FUTURO
Nas comunidades encravadas nas margens do Rio Jequitinhonha o principal sonho é ver a água limpa por muito mais tempo. “O Rio Jequitinhonha representa a minha vida. Sem água nós não vivemos. Tem que preservar isso aqui. Eu sei que tem muitas pessoas que acham o contrário. Nós não temos nada contra o garimpo. O que nós queremos é que a água continue limpa. Então, esse rio para mim e para minha família é a minha vida. Eu volto a falar, sem água nós não conseguimos viver. Eu fico dois dias sem comer, mas sem beber água eu não consigo. Então o que eu quero pedir é que deixem essa água limpa para a nossa sobrevivência. É só isso que a comunidade pede, afirma o agricultor Adão Antunes.
“É muito importante para nós hoje que o rio continue saudável e sobrevivendo, sendo que as pessoas possam desfrutar da água inclusive para consumo humano”, diz o prefeito de Olhos D’água, Rone Douglas Dias. “Para os moradores do Vale do Jequitinhonha, esse rio significa a esperança de vida e de dias melhores. O rio é um marco para a questão cultural do vale, simboliza tudo para as cidades. Sem essa preservação, todos nós pensávamos que teríamos que mudar de região”, afirma Ramon Fernando Noronha de Morais que é ex-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Jequitinhonha e atualmente é vereador por Bocaiúva.
Para o atual membro do comitê e integrante do Movimento Salve o Jequitinhonha, Ari Fabiano, preservar o rio significa também agir para evitar problemas sociais nas grandes cidades. “Essas comunidades são compostas em sua maioria por pessoas carentes que necessitam de suas lavouras, da criação de animais e da pesca para garantir a sobrevivência de suas famílias. São pessoas simples que neste momento de escassez hídrica, mais do que nunca, precisam do apoio do Estado, pois não se trata apenas de preservar o meio ambiente, mas também garantir o futuro de muitas comunidades e a permanência dos moradores nessas localidades, evitando assim o êxodo rural desordenado, que causa sérios problemas sociais nas áreas urbanas”, completa.
NASCENTES CARREGAM ÁGUA CRISTALINA
A expedição do Sisema por comunidades banhadas pelo Rio Jequitinhonha incluiu também visita aos dois principais braços que formam o curso d’água, ambos em áreas do município do Serro, que fica na Região Central de Minas. De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), a nascente geográfica considerada para o Rio Jequitinhonha está próxima à comunidade de Milho Verde, em uma localidade conhecida como Chacrinha. Esse ponto está dentro de uma das 92 unidades de conservação gerenciadas pelo Instituto Estadual de Florestas (EF), a Área de Proteção Ambiental (APA) Águas Vertentes. Ali é possível ver um dos dois braços que forma o rio com quase nenhuma interferência, o que permite perceber a água cristalina.
O braço que sai da Chacrinha corta pequenos povoados e se encontra com um segundo braço formado por outras nascentes do Jequitinhonha. Esse segundo segmento também está no município do Serro, mas não está inserido em nenhuma unidade de conservação.
Normalmente, ele é mais conhecido da população por conta de uma placa indicativa da nascente do Jequitinhonha na beira da rodovia MGC-259, estrada que liga o município do Serro à BR-259, passando pelas cidades de Presidente Juscelino e Datas. Essa parte tem o acesso um pouco mais complicado, por conta da mata densa que precisa ser superada para se chegar no curso d’água. Quando os dois segmentos se encontram, o Jequitinhonha ganha corpo e passa a correr pelo vale que leva seu nome. A área banhada pelo rio dentro do território de Minas Gerais é dividida em três porções: Alto Jequitinhonha, que vai das nascentes até a represa de Irapé, Médio Jequitinhonha, que vai da represa até a BR-116 em Itaobim, e Baixo Jequitinhonha, que vai da BR-116 até a divisa com a Bahia. O manancial ainda corta parte da Bahia e tem a foz no Oceano Atlântico em Belmonte, Sul da Bahia.
Guilherme Paranaia e Edwaldo Cabidelli
Ascom/Sisema
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